quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Hoje falo de mim

Frase quase obrigatória quando uma gaja adoece e falta um diazinho ao trabalho ‘Então, ‘tás melhorzinha? Ontem não vieste!’. E uma gaja em condições lá tem que explicar a verdade que ‘a diarreia ‘tava que não se podia, que não me aguentava nas canetas. Maldita açorda de gambas que comi ontem’. Ou a verdade nua e crua ou a invenção da desculpa de gaja do costume ‘veio-me o período’. Preferível dizer a verdade, ou não fossem as minhas misérias adoentadas exactamente as mesmas das quais padece qualquer comum mortal.

Também não deixaria de ser verdade se dissesse que as canetas fraquejavam, não só do cansaço de maratonar até à sanita, mas também da estafa do trabalho em excesso e do espírito macaco-de-imitação que parece acompanhá-lo. Podia até, no meio do corredor, entre uma ida à fotocopiadora e a interpelação de um colega ‘saudoso’ ou ‘cusco’ divagar acerca do cansaço. Olhar para o sete estrelo e perder-me numa profunda explicação (sem qualquer interesse para o receptor e apenas com sentido para o emissor...eu própria):
‘... que Portugal continua a ser um país de trabalhadores e cheguem-se para lá os molengões que não merecem o pão que comem. Dos que dão o corpo ao manifesto, há os que são os primeiros a chegar (nem sempre os que levam a recompensa, é um facto), e isso sempre é uma grande compensação. Trata lá tu deste berbicacho, e o chefe a olhar, é preciso provar aos colegas que és tão bom quanto eles; encetas então a tarefa que é árdua, põem-te o trabalho em cima dos ombros e até estes já gemem com o esforço, arreias como um burro porque a ‘carga’ e a responsabilidade são pesadas, os joelhos fraquejam, ranges os dentes, a cabeça a moer, a pilha de papéis à tua volta a aumentar (que já nem miragem tens do colega da frente), retesas os rins, costelas e todos os ossos do corpo sentada naquela malfadada cadeira, bufas porque não vês onde está o ‘gato’ que te ensarilha o que parecia tão fácil, dás murros na mesa quando estavas quase lá e alguma coisa te distraiu ou atrapalhou a tarefa, sentes o sangue aflorar-te na cara, transpiras em bica (vira para a cá a ventoinha que estou quase a acabar) e o relógio tic-tac tic-tac, que há prazo para acabar, e as horas inimigas em trabalho rápido e doloroso de parto. Já só te apetece desistir, mas como dos fracos não reza a história e os olhos dos colegas ‘não vai conseguir; será que está quase?; vai pedir ajuda?; não consegue sozinha...’ aguçam-te o espírito extenuado que vai buscar forças onde não sabe que tem ou existem – e o que pede a cabeça violentada é que desistas, que não aguentas ‘mas quem te mandou a ti dizer que fazias?’, e depois pensas que preferes rebentar a ter que encarar o ‘fracalhota’ – tudo para não ficar mal vista.

Se fosse isto que tivesse saído da boca para fora no meio do tal corredor e no meio da tal ida à fotocopiadora, certamente que quando terminasse a divagação ou devaneio, estava a falar sozinha. O ‘cusco’ já se tinha posto a monte há muito, que fracalhote também não é e há trabalho para fazer.

Fraco o espírito, cansado o físico, abatida ou insípida a resposta, fiquemo-nos pela bela da diarreia, que muitos já padeceram dela – satisfaz-se a cusquice e guarda-se o resto cá dentro para quem verdadeiramente nos ouve. A diarreia não passa de mais um tema de conversa no corredor, como falar do mau ou bom tempo no elevador. Absorventes de tempos mortos e silêncios parados que é preciso aniquilar com um sorriso entredentes ‘Muito obrigada, boa tarde...a chuva não vai embora ou o sol hoje é para todos...blá, blá, blá’.

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