sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A vizinha

Tem cara de avental aprumado, molho de chaves tilintante preso a um souvenir emigrante oferta de uns sobrinhos desterrados em Paris, chinelos ligeiros e buço farto. Profissão? Viúva de militar reformado do tempo do monóculo, disposta vezes sem conta a olhar pela casa (e pela vida) dos outros enquanto estes se ausentam de férias ou com outro propósito qualquer. O seu El Dorado? Fica autorizada, quase de papel passado, a cuscar o que existe em gavetas, arcas e baús e todo e qualquer documento a que consiga pôr a mão, o olho e a memória.

Sabe de tudo. No currículo não lhe faltam ‘estrangeirinhas’ arranjadas com um punhado de moradores, não fosse ela o protótipo de cão perdigueiro em estágio para pisteiro, no reles sentido do termo. Cursou a arte de frinchar portas, janelas e acessos, festas e encontros com a medíocre desculpa de um ‘o vizinho enche-me esta chávena com o açúcar que me acabou de repente?’ (quão conveniente a escassez de mantimentos às vezes se torna) à espera de um ‘Entre, entre....fique à vontade’ sem saberem que ELA não precisa de convite.

É omnisciente e omnipresente e não lhe escapa o número de cigarros que o vizinho do lado fuma por todas as beatas que este arremessa da janela, assim como as cartas, contas e todos os assuntos da sua não competência que coscuvilha com a ajuda da sua inseparável caneta-lanterna que usa orgulhosa logo que o carteiro distribui o correio nos apartados dos outros.

Um assunto que deveras a apraz: os adultérios dos demais (que a não existirem ela bem os inventa) dos quais sabe mais que os próprios adúlteros e os quais (existentes e não existentes) apregoa a fim de preservar a moral e os bons costumes em relação aos quais se proclamou juíza suprema. Destes e doutros assuntos trata ela e para fazer valer o seu papel, deveras importante, usa artefactos que não lembram ao diabo como o copo de vidro que empunha cada vez que encosta a orelha, mais ágil que o próprio pé em corrida para autocarro perdido, às paredes e às vidas alheias ou o cajado ameaçador que usa para cutucar o tecto e alertar os transgressores de que não é permitido fazer ruído a partir das 22h – qual Gestapo no controle do recolher obrigatório em tempo de Guerra Mundial – “ quem abusa um minuto que seja, merece morrer!”.

É a Inquisição plantada desde o R/C até ao último piso, a ASAE num fiscalizar apertado e estrangulador, in loco, in extremis, per sempre!!!! Estranha forma de vida!

domingo, 3 de agosto de 2008

Para além da vida

Josefa Borges, Maria Viçoso, José Costa, Cristina Rodrigues, Juventina Sousa, Dr. Santos Clara Gomes, Virgínia Figueira...nomes atrás de nomes, atrás de entidades e identidades. Homem, mulher, mulher, homem, homem....não importa. Seguidos, ininterruptos, não necessariamente por ordem cronológica, mas lá perto. Enfileirados em mármore ou outro tipo de pedra, com adornos dourados ou menos preciosos, dependendo da sua social importância ou familiar devoção religiosa na crença numa vida pós-morte.

Despertam curiosidade naquele momento. Curiosidade não, talvez atenção. Não porque os conheçamos nem mesmo porque nos tenham passado pela cabeça, alguma vez, mas porque estamos vagos (ou será despertos?) naquele momento. Só tomamos consciência destes rostos quando participamos num episódio destes – um cortejo fúnebre - e ganhamos tempo a olhar os que não são, mas já foram um dia. Os nossos, os dos outros, todos.

Fotografia a sépia, sempre a sépia. Uma após a outra. Todas iguais ou muito parecidas como se o mesmo artista ou fotógrafo as tivesse captado da mesma forma, no mesmo tempo, no mesmo lugar. Não sorriem os rostos. Estão sérios, antigos, envelhecidos, petrificados, fósseis, imóveis. Mais sérios antes na altura do retrato do que agora, no preciso lugar onde jazem extintos. Um prenúncio de morte? Tanta coisa em comum uns com os outros. Desconhecidos em vida, vizinhos na morte.

Flores secas, defuntas, flores frescas, de plástico, naturais ou viçosas em contraste com a morte que velam – todas sinónimo do (des)amor e (des)homenagem que recebem dos seus entes vivos e da falta que estes deles sentem.

Porque a morte dos outros para nós é nada ou quase nada - o que os olhos não vêem, o coração não sente. A perda de quem não conhecemos não nos traz dor, não tira sono, não acarreta preocupação nem prejuízo. Não pensamos nela - nessa morte que não é nossa e nem mesmo circunvizinha. Sabemos que está lá porque é o desfecho natural da vida, ainda que nos tenham ensinado que esta é uma breve passagem para uma outra coisa qualquer (gostava muito de saber porque é que na altura de embarcar nessa forçosa e inevitável viagem queremos tanto agarrar-nos à margem de cá!).

Light things

Espaço virtual de escritas, leituras, opiniões, dissertações, críticas, abusos, diarreias mentais, provas da obstipação cerebral medíocre dos pensamentos de alguns, desentupimentos de sentimentos, libertação de emoções estranguladas…dá para tudo, basicamente.
Dá para o seu dono (se é que se pode alcunhar de dono o senhorio de um espaço onde não vigora nem vinga o direito da propriedade privada) e para todos os curiosos que o lêem, dragam, esmiúçam, retalham, interpretam, profanam e até ofendem.

Um blog é um Universo - depois de desonrado o propósito mais puro da sua nascença e prodigalizada bem-aventurança pode fazer-se e dizer-se tudo o que aos seus usuários apetecer e aprouver.

Aparece de tudo.
Louvores de quem gosta de nós e nos aprecia, flirts saudáveis entre panegíricos de carinho e de escrita, flirts nada salutares e até inoportunos, genuínas apreciações e autêntico interesse no que dactilografamos, provocações mais ou menos arquitectadas sobre o que pensamos, picardias sub-repticiamente desenvolvidas, divergências de opinião pouco saudáveis e com propósitos muito pouco escrupulosos, maledicências despropositadas e mal disfarçadas de pseudo-elogios em patranhas, ardis, astúcias e artimanhas pouco brilhantes.

Para isto se cria a censura (in blog).
Nada democrática e muito pouco consonante com o regime em vigor, mas conveniente, vantajosa e absolutamente necessária.

Não se publica apenas o que é bom e está em sintonia com a nossa opinião, mas também o discordante; não só o real e verídico, mas também o fantasiado…é este o propósito de um blog – conter o que ao dono lhe apetecer e estar disponível para ser lido, dissecado, esventrado e desvendado por outros e até por si mesmo, mas NUNCA para servir a mentira e a idiotice dos sem nome que abusam de um espaço não-seu para tecerem fios e tramas do que a ninguém interessa (nem mesmo a eles próprios!).

Este meu escancarar visa não só expor a nu o que se passa no meu espaço, mas também o que se passa no espaço dos outros, pois certamente não serei a única ‘vítima’ da parvoíce-cibernauta-anónima (excelente título para um grupo de auto-ajuda!)

(Acho que isto já foi escorrido por aqui algures, mas nunca é de mais relembrar para ajudar os sem-lugar a encontrarem o sítio onde pertencem – esta verdade metaforizada dos blogs aplica-se, infelizmente, a tantas outras circunstâncias da vida).