quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A primeira

Tinha sido assim esta noite.
Tímida, envergonhada, retraída, encavacada, aliás como todos os encontros prévios, não fosse a forma como se tinham conhecido menos convencional do que o costume ou razoavelmente menos aceitável para um punhado de pessoas.

Depois do primeiro impacto e transposto o inicial desassossego acompanhado da inquietude aflitiva das borboletas no estômago, a vontade refreada pelo medo tinha alcançado tamanho ímpeto que a vontade de estar e ficar começara a ganhar forma, conteúdo e recheio.

O sono era muito, a aptidão para o concretizar muito pouca entre discretas carícias, beijos acanhados e contidos abraços. Não fazia mal que não tivesse dormido a valer, pois que a valer tinha sido o encontro, adiado o repouso para quando não se tornasse desperdício perder um toque de mãos ou para quando visse retalhados e minguados os encontros seguintes.

(Sabia do que gostava.
Que a vida podia dar-lhe prazer e que talvez pudesse até melhorar, mas que nem sempre as suas mãos eram patroas do destino. Não simpatizava com as contrariedades da ‘relação’ à distância e da separação contrafeita que coava, lentamente, a vontade de investir sem medo, sem trapézio e sem rede).

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Vidas

Sentia que sabia o que era pelo que tinha sido sabendo claramente o que seria amanhã. O que conhecia da vida parecia muito não passando, afinal, de uma reentrância de nada.

O ‘mata-bicho’ era sempre o mesmo: (basicamente o espelho de tudo na vida, repetido e renovado vezes sem conta) um naco de broa já envelhecido intermitentemente mergulhado na caneca de leite com uma pálida cevada, minguado em dias de semana e trabalho, dilatado em dia de Domingo de missa, de hóstia e de dar Graças-A-Deus mais que o costume.

Despertava antes do dia acordar, combinava o parco banho de água gelada com a geada orvalhada que durava lá fora, agasalhava-se e aconchegava no alforge a familiar porção de broa combinada com o naco de toucinho fumado que lhe amparava o estômago na fadiga do dia e na canseira dos caminhos da serra e das cabras.

Estas, com as ovelhas que pastorava havia anos, eram as companheiras perfeitas desde que se lembrava que o mundo era (o seu) mundo e que talvez tivesse nascido apenas para aquilo. Não percebia nada de anatomia, tecnologia, astronomia, política ou economia. A única versão que conhecia desta última era traduzida em alqueires de milho ou câmbio directo de mel por leite ou tudo que fizesse falta e não se produzisse lá em casa.

Nunca tinha usado maquilhagem nem saltos altos e a única jóia que tinha era um fio de pérolas muito remotamente autênticas deixado pela mãe num testamento ajustado. Tinha na alma e na pele marcadamente vincados o calor e o frio dos dias difíceis. Não conhecera outros. Tinha crescido ou talvez não … nem sabia. Tornara-se irmã, mulher, casada, mãe e, na maioria das vezes, sem se ter dado conta. Desconhecia as letras e as cartas de amor e os livros bonitos que via nos filhos, ignorava o que era enrubescer de afeição ou ruborizar de desejo, inexplicáveis que eram as ânsias de quem nunca amou ou conheceu o amor como teria merecido.

Tinha sido e era feliz.
Pois não será ou terá sido bem-aventurado aquele que não conheceu outras vidas?

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Little Big Things

Pensarmos nas coisas, dissecá-las, anatomizá-las e, depois, ainda, decidir o que fazer com a polpa que aproveitamos delas não é, nunca foi nem será tarefa fácil. Entendamos ‘coisas’ como aquilo que nos dizem, ouvimos, lemos, as verdades ciciadas, os pensamentos furtivos, as acrobacias literárias contidas num livro traduzidas em habilidades estilísticas e recursos mais ou menos expressivos que nos rasgam a boca em O.

Cada um (des)complica as verdades, as mentiras e as dúvidas à sua maneira e a seu bel-prazer. Alguns, não poucos, lêem, vêem, ouvem e experimentam sem nunca perceberem peva de coisa nenhuma ou quererem ler os segundos ou terceiros sentidos naquilo que as almas mais sensíveis, mas exoneradamente mais inócuas, são, escrevem, agem e falam.

Verdades, mentiras, interpretações, sensibilidades e inteligências à parte, o que importa, acima de tudo, é que estejam atentos e não passem absortos por esta única oportunidade de vida que é só esta e mais nenhuma.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Era livre assim como o vento.
Não queria fardos nas asas nem sentimentos de falta de nada que lhe pudessem emaranhar a vida mais tarde ou mais longe.

Era feliz ou já nem sabia bem o que seria agora que podia sentir que já o não era ou não tinha sido.
Limitara em si e nos outros o que se permitia sofrer com ou sem o assentimento daquilo que lhe parecia aceitável.

Tinha a mão estendida a tudo o que fosse bom sentir e a fizesse alegrar.
Queria o desconhecido já que o conhecido não lhe tinha trazido quase nada de bom e se o fora já era tão longe que não se lembrava.

Olvidava depressa e para trás das asas o que não importava por não ser favorável.
Guardava no peito as promessas douradas dos dias de amor e na cabeça as tranças feitas com juras eternas de afecto e desvelo.

Fazia-lhe falta querer desprender-se de uma vida remota e passível à frente de ser bem vivida.

Era bom ser assim livre e sonhar e pensar que tudo era possível e que a vida era fácil assim….só assim.