quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Sem título (ainda)

Era uma estrela de cinema. Pelo menos era o que ele achava. Nunca a tinha visto por ali, mas bastou olhar uma vez para ficar inteiramente convencido. Até nervoso estava, tanto, mas tanto que até se pôs a garatujar assinaturas na toalha de papel da mesa que sempre tinha achado sem graça, preferia toalhas de pano, mas que hoje lhe convinha tão bem para disfarçar os nervos.

Jantava todos os dias no Salmoura. Sempre e de há uns anos para cá era uma das suas rotinas diárias. O mesmo ‘Boa noite, senhor José, como estamos, hoje?’, a mesma resposta ‘Boa noite, senhor Dr. Vou já atendê-lo’. Não que não gostasse da comida da Dª Natércia, sua empregada há tantos anos, mas todos os dias olhava para o prato encoberto por outro com o esmero, a dedicação e o primor que só ela sabia preparar, acompanhado do mesmo bilhete ‘Que lhe saiba bem, menino’, e todos os dias o oferecia de presente ao seu gato Homero que tão satisfeito lambia os bigodes depois do repasto. Nunca ninguém soube: nem a Dona Natércia que era o Homero que se lambuzava com a sua dedicação, nem o Sr. José que ele tinha, diariamente, conduto distinto para jantar e que preferia o seu bife, nem ele próprio porque prescindia do calor da comida da Dª Natércia a favor da afabilidade do bife do dono do restaurante. Seria o bife ou o hábito do ritual, da mesma cara, do mesmo vinho, da mesma toalha de papel que tanto o irritava até àquele dia? Não sabia. Sabia que todos os dias passava em casa depois do trabalho, afagava o gato, lia o bilhete, destapava o prato desejado pelo felino, voltava costas e caminhava ao encontro do bife do Sr. José.

Hoje sentia-se diferente. Não que o bife estivesse mais tenro ou o Sr. José mais terno. Não que o dia lhe tivesse corrido melhor ou pior. Mas depois de a ver, a vida parecia bem mais aprazível. Olhava de soslaio para que não pensassem que era uma espécie de perseguidor ou voyeur. Sentiu-se mal por ela, por eles. Desde que tinham chegado, as únicas palavras trocadas tinham sido acerca das opções do menu. Comiam em silêncio. O olhar dela tristonho e sem brilho. Estava apagada, da forma como só as estrelas de cinema sabem ficar quando obrigadas a interpretar um triste papel. Não era feliz, ou pelo menos não estava feliz, ao lado daquele homem, também ele com dentadura de artista e com ar infeliz, mas seguro de si.

Naquele instante sentiu-se arrojado e afoito, capaz de a amar profunda, íntima e eternamente. Tinha desaparecido o rotineiro, acanhado e acobardado homem que o representava e só lhe apetecia levantar-se da cadeira, caminhar até ela, abotoar-lhe a mão e fugir dali. Subitamente, o suor escorria-lhe na fronte, a ânsia assanhada e sincopada, a inquietação incontrolada e descuidada, as mãos suadas do desassossego exasperado, as pálpebras nervosas como se sentisse o ritmo cardíaco na visão vigilante, as palavras entupidas e emudecidas na garganta, as pernas narcotizadas ao movimento, o coração galopante nas certezas e incertezas da atitude que desejava ardentemente tomar, a vontade frouxa e depois moribunda. Do lado dela, nem um sinal. Era isso que ele esperava: um olhar, um indício, um ‘força, coragem, é a ti que eu quero, salva-me daqui’!
Seria tudo da sua imaginação? Dar-se-ia o caso de que ela não estava triste, mas apenas exaurida. Todos sabemos que as estrelas de cinema sabem fingir e têm aquela dificuldade em ‘despir-se’ da personagem. Podia ter-se dado o caso de que ela tivesse estado a filmar antes do jantar e ainda estivesse imbuída daquele espírito.

Desde pequeno que era assim. Empolgava-se com algo, fazia o ‘filme’, alimentava o entusiasmo e depois abrandava, travava o impulso e não se permitia levar o desejo até ao fim. Não tinha coragem. Tinha receio de se tornar ridículo, de falhar, de não parecer prometedor o suficiente. Decidiu deixar de ser expansivo, pôs freio na ansiedade apaixonada, travou o medo que já sentia de não a ter ou de a perder sem nunca a ter tido, riscou os gatafunhos na toalha de papel, olhou para o prato, fechou os talheres, pagou a conta com um ‘Boa noite, Sr. José’, e saiu.
Nunca mais a viu, não lhe sabe o nome, mas sabe que aquela mulher era especial e não há dia em que não pense se na cabeça dela ele já passou, um dia.

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