quinta-feira, 27 de março de 2008

A casa dela

A casa era dela. Tinha sido em vida e ainda o era, hoje, na morte. Nunca tinham lá entrado depois do 'acidente'. O pó assentara em tudo que era friso, vidro, recanto, tecido, madeira, ferro, caixilho, moldura. Pó do ar, pó da vida, pó das cinzas (que os suicidas, aqui, são cremados). Gavetas e armários fechados, uma ex-vida encerrada e guardada para relembrar mais tarde, perfume de corpo enclausurado na roupa abandonada, arrumada ou deixada ao acaso.

A coragem tinha que vir. Esperava-a há dias e meses. Não deveria custar assim tanto abrir uma gaveta em busca de um escrevinhanço qualquer com um motivo, uma explicação. Abriu uma escrivaninha. Papéis, documentos, notas soltas, mas nada que explicasse o desejo desta mulher pela morte. Queria explicações e dolorosas razões que tivessem levado a opção de morrer daquela mulher que ali se sentara naquela cadeira, que acendera aquele candeeiro, que lera aqueles papéis e escrevera e rabiscara com aquela caneta.

A forma do sofá da sala era a do corpo dela. A da cama também. Decidiu senti-la e apoderar-se dessas formas. Nem que fosse por uns breves minutos. Nunca mais se sentará aqui, cogitou. Não se deitará jamais nesta cama, a dobra do lençol não será jamais feita e aconchegada ao corpo, o pijama primorosamente dobrado manter-se-á assim, intacto, morto, imóvel, a luz do candeeiro de leitura não voltará a acender-se, a teia de aranha reluzente e envolvente no canto do tecto não será removida, os chinelos imóveis não voltarão a caminhar, o roupão atrás da porta não voltará a esvoaçar pelo corredor, o gemido de sono sobressaltado não voltará a ouvir-se.

Decidiu deixar tudo como estava.
Para quê encontrar o papel, a justificação, a tristeza, a dor? Preferia senti-la assim: 'Viva' dentro de casa, nos seus pertences, nas suas coisas, nos seus imcompreendidos gatafunhos, na sua poeira, no cheiro imortalizado na sua roupa.
Amava-a. Tanto, ainda.
Sabia que não podia voltar atrás e devolver vida porque ela a quis perder. Era tarde. A morte é certa, mas quando procurada é precoce e reprovável. Deus 'castiga' os suicidas. Não ia, também, ele castigá-la à procura de motivos. 'Tocar' nela, hoje, e 'senti-la' tinha sido o suficiente.

Sem comentários: