domingo, 11 de maio de 2008

O legado

Os pais fizeram-na assim. Manteiga derretida. Não que isso fosse problema. Aprendeu boas lições de vida com eles. Daquelas que ficam entranhadas e cravadas na pele para o resto da vida. Respeitar os outros, não tratar mal por dá-cá-aquela-palha e até dar a face direita depois de ter sido esbofeteada na esquerda. Outro legado lhe deixaram: pedir perdão é sinal de grandeza e nunca de fraqueza, rebaixamento ou humilhação. Mostrar o que sentimos era outro dos mandamentos. Para quê reprimir um ‘amo-te’ quando podemos dizê-lo vezes sem conta porque não se gasta?

Foi assim que cresceu e foi educada. As pessoas não são sempre boas ou más, não têm defeitos, mas sim características e era assim que ela as via. Mais vale empolar as virtudes e olhar para elas com admiração do que inchar as imperfeições e transformá-las num esboço falhado de alguém que não pode ou sabe mais.

Ensinaram-lhe que temos que estar munidos de uma balança. Ela entendeu, logo à primeira, o que isso significava. A escolha só podia ser feita por ela e por mais ninguém. Uma coisa equilibrada. Dois pratos, um de um lado, outro de outro, sem margem para erro ou dúvida. De um lado os prós, do outro os contras. Uma escolha ajuizada e prudente. Não bastava ter o objecto, a tal balança, era preciso saber usá-lo com cabeça, coração e sentimento. ‘Que pessoa queres para a tua vida’, questionavam eles. ‘Põe num prato as boas características e no outro prato as más e PENSA ‘o que é a minha vida com esta pessoa e o que é sem’. A escolha, assim, era fácil, se tudo dependesse dela e o amor triunfasse, que se lixassem os defeitos. A escolha era óbvia. Antes viver com os defeitos, mas ficar com essa pessoa, do que perdê-la para sempre. O amor triunfava e a adaptação era o troféu desejado.

Ela cresceu, viveu, reviveu e a vida ensinou-lhe uma coisa diferente.
O legado mantém-se, mas nem tudo são rosas como diziam os outros e quando só ela é que está munida dessa balança está o caldo bem entornado e derramado. Um sozinho não luta e ela sozinha não sabia lutar. Não lhe ensinaram essa parte da lição tão importante. Afinal de contas, as pessoas têm mesmo defeitos. Alguns genéticos, outros que a vida plantou e se tornaram incontornáveis por mais que empreendesse e tentasse trocar-lhes as voltas.

A sua experiência acabou por fazê-la de pedra. Uma ardósia dura onde se permitiu ser escrita, mas nunca apagada. Ela ainda perdoa, mas não esquece os riscos mal escritos, tão grosseiramente garatujados e as intransigências e ideias pré-concebidas que quem nunca a desejou ler como ela merecia.

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