segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Vidas

Sentia que sabia o que era pelo que tinha sido sabendo claramente o que seria amanhã. O que conhecia da vida parecia muito não passando, afinal, de uma reentrância de nada.

O ‘mata-bicho’ era sempre o mesmo: (basicamente o espelho de tudo na vida, repetido e renovado vezes sem conta) um naco de broa já envelhecido intermitentemente mergulhado na caneca de leite com uma pálida cevada, minguado em dias de semana e trabalho, dilatado em dia de Domingo de missa, de hóstia e de dar Graças-A-Deus mais que o costume.

Despertava antes do dia acordar, combinava o parco banho de água gelada com a geada orvalhada que durava lá fora, agasalhava-se e aconchegava no alforge a familiar porção de broa combinada com o naco de toucinho fumado que lhe amparava o estômago na fadiga do dia e na canseira dos caminhos da serra e das cabras.

Estas, com as ovelhas que pastorava havia anos, eram as companheiras perfeitas desde que se lembrava que o mundo era (o seu) mundo e que talvez tivesse nascido apenas para aquilo. Não percebia nada de anatomia, tecnologia, astronomia, política ou economia. A única versão que conhecia desta última era traduzida em alqueires de milho ou câmbio directo de mel por leite ou tudo que fizesse falta e não se produzisse lá em casa.

Nunca tinha usado maquilhagem nem saltos altos e a única jóia que tinha era um fio de pérolas muito remotamente autênticas deixado pela mãe num testamento ajustado. Tinha na alma e na pele marcadamente vincados o calor e o frio dos dias difíceis. Não conhecera outros. Tinha crescido ou talvez não … nem sabia. Tornara-se irmã, mulher, casada, mãe e, na maioria das vezes, sem se ter dado conta. Desconhecia as letras e as cartas de amor e os livros bonitos que via nos filhos, ignorava o que era enrubescer de afeição ou ruborizar de desejo, inexplicáveis que eram as ânsias de quem nunca amou ou conheceu o amor como teria merecido.

Tinha sido e era feliz.
Pois não será ou terá sido bem-aventurado aquele que não conheceu outras vidas?

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